João Amós Comênio




A educação da juventude se processará facilmente se começar cedo,antes da corrupção das inteligências.

João Amós Comênio

sábado, 26 de novembro de 2011

Um olhar sobre os modos de se alfabetizar hoje

                                                                                                                    Amanda Eccel Dornelles e Leni Vieira Dornelles

É necessário que a alfabetização das crianças a partir da educação infantil constitua-se não como um conjunto gráfico, mas como uma experiência repleta de significados que tem como base as experiências culturais significativas das crianças
"Brinquei com peixes e anjos, fui menina e fui rainha acompanhada e largada sempre a meia altura do chão. A vida um barco, remos e ventos, tudo real e tudo ilusão" (Luft, 2005, p. 87). Poderíamos parafrasear esse trecho do poema de Lya Luft dizendo: "Brinquei com peixes e anjos e assim fui me produzindo como um sujeito alfabetizado". Assim iniciamos este artigo, que pretende olhar com estranheza algumas questões que se relacionam com a alfabetização das crianças hoje.
Esse tema sempre volta à baila nas discussões que tratam de sujeitos infantis, principalmente nos últimos anos, quando a Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Sul busca fundar uma "matriz de competência" na área de alfabetização estadual, com vistas a orientar o trabalho pedagógico nas classes de alfabetização de 6 anos. Pode-se sentir o efeito dessas metas no trabalho com crianças que antes compunham as classes de nível A e nível B. Essas "matrizes de competências" podem ser analisadas a partir de verdades que se pretendem absolutas no que diz respeito aos modos de construção da alfabetização das crianças.
Entendemos essas matrizes como táticas de governamentalidade de crianças e professores. Afirmar isto é mostrar o efeito de tais estratégias no momento em que muitos professores passaram a ter de decidir sozinhos suas atividades com as crianças e, com isso, voltam a fazer uso, também em classes com alunos de 4 anos, dos exercícios "grafomotores ou de prontidão", atividade que retornam ao cotidiano de muitos professores como um requisito para a alfabetização, fazendo com que as crianças passem parte de seu tempo na escola de educação infantil realizando esse tipo de treinamento. 
Por outro lado, pode-se falar das crianças que, no âmbito do plano de educação de 6 anos, compõem os projetos-pilotos propostos no Brasil. Esses programas compõem uma lógica de competitividade na produção de mecanismos de controle sobre o desempenho dos grupos de crianças e professores (Schineider, 2009). 
Bujes (2001) mostra-nos como se produz um sujeito que vive um momento fecundo quando tem a possibilidade de significar as coisas do mundo graças à interação com as pessoas e as coisas do seu grupo de experiências culturais. A isso a autora chama de educação. Essa participação na experiência cultural não ocorre isolada: ela se torna possível em um ambiente de cuidados, de uma experiência de vida afetiva e de um contexto material que lhe dê suporte. 
Consideramos que a produção do sujeito alfabetizado faz parte de um conjunto de possibilidades de interação com as experiências pessoais que fazem parte de seu grupo cultural. Entendemos como necessário que os professores que atuam com crianças, sejam elas da educação infantil ou do primeiro ano do ensino fundamental, percebam que a criança está sendo alfabetizada quando interage com as coisas do mundo e percebe que:
Luís é maior do que João;
Luísa joga futebol e Cauê sabe cozinhar; Rafa tem dois pais e Meg mora só com a mãe; 
 Fernando é gordo, Marina é negra, Lucca usa óculos, Gabriel é magro e todos brincam juntos;
a gata dá de mamar aos filhotes;
o peixe precisa de água para viver;
seu desenho está diferente daquele que fez no primeiro dia de aula;
as brincadeiras organizam o espaço;
todas as atividades (brincar, comer, dormir) têm seu devido tempo;
modos diferentes de alfabetização estão presentes na música, na expressão gráfica, no jogo corporal, na palavra, no verso, na história, no filme, no game, no faz-de-conta, no passeio com colegas;
algumas coisas podem ser feitas pela criança sozinha, enquanto outras requerem ajuda;
o equilíbrio é uma habilidade requerida para se caminhar na mureta;
os meninos e as meninas têm corpos diferentes.
Talvez se alfabetizar "brincando" com as coisas que estão no mundo comece a faltar nas práticas de alfabetização infantil. Não o brincar excessivamente pedagogizado, que faz parte da rotina de muitas salas, mas sim uma alfabetização que se constitui também através do brincar pelo brincar. Por isso, acreditamos ser importante "resgatar o espaço do lúdico pelo lúdico, passear para curtir o que esta em nosso redor, assistir a um filme apenas por assistir, ouvir ou contar histórias pelo mágico que elas carregam, curtir uma praça para rolar na grama, [...] não esquecer que olhar, tocar e experimentar, faz parte do ser criança, faz parte da descoberta na infância e da construção de novos sujeitos criança" (Dornelles, 2001, p. 106). Assim vamos nos alfabetizando.
Daí ser importante estranhar como as "velhas" práticas de alfabetização revestem-se com "novas" roupagens, reguladas por relações de poder que nos ajudam a perceber que o discurso que as atravessa na atualidade faz parte de um discurso que, como afirma Foucault (2008, p. 10), "não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominação, mas aquilo pelo qual se luta, o poder do qual queremos nos apoderar".
Torna-se necessário que a alfabetização das crianças a partir da educação infantil constitua-se não como um conjunto gráfico, mas como uma experiência repleta de significados que tem como base as experiências culturais significativas das crianças. É preciso entender que essas experiências não devem ser proporcionadas pelo terceiro setor, que pretende "empresariar" a educação através de pacotes educacionais, preparando a criança para uma racionalidade neoliberal.
Para voltarmos a brincar com peixes e anjos, ser rainha e pião, ser fada e bruxa, brincar de pés descalços na areia e viver a infância com prazer e emoção, é preciso ressignificar alguns modos de alfabetização que utilizamos nas escolas. Para isso, é mister que se atue em espaços que possibilitem o estranhamento das práticas de alfabetização de nossas crianças e estejamos atentos para o modo como pesquisadores, especialistas e professores são interpelados por discursos de verdade acerca do como alfabetizar as crianças hoje. Que como adultos sejamos capazes de identificar o caráter produtivo das verdades que pretendem fabricar sujeitos alfabetizados hoje, não as tomando como a verdade absoluta ou redentora, mas como um processo de verdade historicamente produzido que pode, a cada ato da educação infantil, ser descontruído com o seu grupo. 
Alfabetizar crianças exige, como afirma Dornelles (2007), situações de experiência que lhes possibilitem explorar as coisas do mundo e explorar-se; descobrir o outro e descobrir-se. Pensar dessa forma é potencializar o ato de alfabetização. É estranhar o nosso entendimento de criança, de infância, de alfabetização. É entender que a escola, a família, a vida devam ter sua existência marcada para possibilitar às crianças outros devires para e no mundo.
Amanda Eccel Dornelles é especialista em Educação.
Leni Vieira Dornelles é doutora em Educação e professora da Faculdade de Educação da UFRGS.
ledornel@redemeta.com.br
Fonte : Revista Pátio

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